andei um pouco em círculos pela
cidade a fim de colocar o meu corpo em movimento já que a cabeça não consegue
focar em nada, cá de volta estou na praça a ouvir o último cantar dos
passarinhos antes que a noite tome forma no céu. pego a caneta e o caderno para
anotar alguns versos que desenrolo livremente
desnudada a alma
o que segue é o corpo que
continua a pulsar,
é que coisas da carne ficam,
mas o espírito límpido ganha
altura
em vista de, em meio às nuvens,
poder autoanalisar-se
é que têm tantas coisas que me
escapam
que chego a perder um pouco o
rumo
...
na verdade, não sei muito bem o
que tenho a dizer, é que tem uma coisa estranha se passando em minha cabeça,
tirando-me o eixo, dissipando o esforço, agarrando a vontade… um não sei o quê
do pensamento que faz a vista observar os caminhantes em suas pressas de fim do
dia, os automóveis buzinarem-se nas esquinas e os comércios encerrarem seus
expedientes. já doei cigarros de palha a mendigos e emprestei meu fogo aos
maconheiros, assim a consciência devia fazer-se limpa, mas carrego algo no
peito que amarra. pego então minha cachaça que vai na mala para entornar um
gole, dissipo um pouco a consciência para ver se encontro um pouco de minha
alma. observo um cachorro de madame a mijar por todo o canto e uma mulher
catando latinhas ao redor dos bancos. em um prédio um tanto distante surge uma
silhueta com a lâmpada recém-acesa e continuo sem desvendar essa sensação que
me estranha, foco então o meu olhar às formas geométricas do parquinho de
criança que tem dois cavalos de madeira, desses feitos para balançar, e nem
essa imagem de infância traz algum resquício da lembrança daquilo que está a me
perturbar.
(certa vez um amigo me mostrou um
livro do kundera, o mais famoso dele, e li logo no início uma reflexão sobre o
eterno retorno retirada de nietzsche. naquelas três ou cinco páginas ficou-me
marcada a questão de que se tudo age em ciclos e se apenas alguns eventos são
os que carregam o signo da não repetição, e por isso têm seu peso assegurado
pelos livros de história, todo resto é muito leve, a vida, as alegrias e a
danação. o autor perguntava-se, o que para ele era uma pergunta sem resposta
até então, se podemos atribuir valor positivo ou negativo para o peso ou a
leveza. como não li o livro e fiquei apenas nessa parte, não sei dizer se ele
encontrou resposta para isso.)
pensando na leveza e no peso da
vida, sou obrigado a abandonar o meu pouso na praça devido a uma chuva rasa que
começara a cair. encontrei abrigo para a intempérie passageira em um boteco
sujo no meio do caminho de minha casa. sentei ali recolhido e juntei umas
moedas para tragar uma cerveja barata enquanto meus ouvidos atentavam para uma
conversa na mesa ao lado. uma mulher desabafava para seu marido, amante, amigo,
filho, desconhecido, não sei, a respeito do quão bagunçada lhe parecia sua
vida. narrou toda uma rotina de afazeres e preocupações, cuidar do pai já muito
idoso e do neto que ainda está nas fraldas, algumas dívidas acumuladas e outras
coisas dessa ordem; como sentia a vida abarrotada de uma forma que nada ali
entrava ou sequer saia. enquanto isso, entornava mais uma dose de bavaria no
copo ainda pela metade, bebia um gole, com um esboço de deboche, “apenas um
porre se encaixa”, e sorria com uma cara disforme. de repente, me vi tomado por
essa encenação e, com isso, penetrou no mais profundo de meu eu o relato que
acabara de me ser narrado, senti uma angústia e um lampejo de excitação na face
da mulher ali defronte a mim sentada e, despropositadamente, esqueci daquilo
para que até então eu não encontrara palavra. um velho de fronte sisuda e olhos
opacos surgiu em meu campo de observação e atraiu de repente minha atenção,
encaminhou-se para a jukebox que ladeava o balcão do bar e retirou de um dos
bolsos da calça uma moeda, tilintou-a dentro da máquina e escolheu uma canção,
enquanto a música não começava se postou embaixo do toldo do bar, acendeu um
cigarro e ficou a observar a leve correnteza que a água da chuva formava na
guia da calçada. reconheci de imediato o som mecânico que tomou o boteco e
invadiu meus pensamentos, comecei a cantar internamente aquela música e, quando
os versos
“a minha alucinação é suportar o
dia a dia e meu delírio é a experiência com coisas reais”
se pronunciaram, veio um nó na
garganta que me deixou intranquilo, esqueci-me completamente daquela mulher com
sua bagunça própria, enchi meu copo já vazio com a cerveja já quente e fui em
direção daquele homem que fumava. a meia distância me pus a observa-lhe as
feições enquanto a música o invadia. aquele rosto outrora sisudo se tingiu de
uma expressão serena e pensativa, e seus olhos fizeram-se vagos com uma sombra
de umidade, analisei com mais atenção aquela figura que estava me ladeando, sua
testa com uma ruga cortante de lado a lado, uma barba cinzenta e rala por lhe
preencher quase que a totalidade da parte inferior de sua face, seu cigarro
queimando e produzindo uma cinza que não se quebrava e só crescia de proporção,
suas roupas um tanto quanto sujas e gastas preenchiam um corpo esguio cheio de
veias e artérias que saltavam de seus braços. reconheci aquela figura como um
lampejo de meu futuro, era o eu de aqui uns tantos anos que estava ali a
observar a chuva, sem tristeza ou alegria, se debatendo apenas com a confusão
de seus próprios pensamentos indizíveis. tive vontade de abraçar-lhe, colocar
sua cabeça entre minhas mãos, beijar-lhe os olhos e falar-lhe que não estava
sozinho, que podia contar com o seu eu ainda moço, que podiam se apreenderem
juntos, caminhar na chuva em busca de algum significado para as suas frustrações,
que talvez seriam felizes se morassem juntos em um quarto de um hotel fuleiro
no centro da cidade, compartilhando, o mais jovem, suas esperanças, e o mais
velho, suas lembranças, e com isso se completarem, sem mais nenhuma necessidade
exterior a eles mesmos, que eram um.
(li ou ouvi de alguém que não me
lembro a respeito de uma necessidade primordial que o ser humano tem de gritar,
gritar como um urro animal, um grito nunca praticado devido às convenções
sociais que desagradam esse tipo de comportamento. o grito então fora relegado
apenas a momentos determinados de muita dor ou de perigo, e a sociedade
ocidental inteira estava fadada a viver com uma imensa vontade nunca colocada
em prática de gritar sem motivo aparente ou necessário. certa feita, caminhando
pelo centro de alguma cidade onde estava de passagem, me deparei com uma cena
triste em uma viela paralela a uma grande avenida movimentada: uma garotinha de
menos de oito anos segurava um gato morto apertado ao peito que soluçava. em
choque, desviei dessa vista pois não consigo lidar com essas coisas da morte,
mesmo quando são de animais indefesos. longe dali, tive uma imensa vontade de
gritar.)
um estraçalhar de vidro
intromete-se em meu devaneio, a mulher com a vida bagunçada desata a berrar com
seu marido, amante, amigo, filho, desconhecido, ameaça, xinga e quebra coisas a
sua volta. diante dessa confusão entorno minha cerveja e seu gosto quente
diluído me rasga o estômago vazio de alimento, acho que hoje não comi nada, me
esgueiro da maneira mais felina possível e pego minha mala e me ponho a ir
embora daquele lugar que cheira a tragédia de programa televisivo de fim de
tarde, não quero ser testemunha de nada. enquanto saio, procuro o velho sisudo
e percebo que ele já se foi ou desapareceu, em vista disso acredito mesmo que
ele é minha encarnação de alguns anos, ou um anjo travestido de mim mesmo no
futuro que estava ali para me passar algum sinal necessário que não tive tempo
de compreender. ponho-me a caminho de casa a passos fracos já que a chuva
diminuíra consideravelmente sobrando apenas alguns poucos pingos gordos
descompassados. passo pela avenida principal da cidade e já não há tanto
movimento para além de carros apressados que rasgam sinais de trânsito e cantam
pneus, não sei que horas são, pois meu celular está descarregado já há alguns
dias. vou me tingindo de uma grande ideia de escrever um livro, um romance que
narra as desventuras de um homem de meia-idade que tem a incrível capacidade de
não completar nada daquilo que se propõe, ele sempre está a desviar de seus
compromissos firmados e principalmente daqueles planos que ele mesmo se impõe.
o livro deveria narrar o dia a dia desse ser desencontrado no período de um ano
onde nada de interessante aconteceria, mostraria as agruras de ganhar seu
sustento parco serviente apenas para pagar o aluguel de um cômodo nos fundos da
casa de uma idosa doente que cria trinta e oito gatos antes abandonados,
alimentar-se de coisas muito baratas servidas em pratos encardidos e, com a
quantia que lhe sobra, comprar cartões de felicitações que coleciona desde a
adolescência, mas que nunca encontraram pessoa intimamente conhecida e
merecedora de seus envios. esse homem seria feliz a sua maneira, isso é
importante e essa é a grande questão que me entrava já que não consigo
encontrar na minha arte poética interior a forma exata de descrever sua
felicidade. talvez não haja em mim felicidade suficientemente inscrita para que
eu consiga escrever a felicidade dessa personagem que me habita.
(outro dia dei de frente em uma
esquina com uma oferenda de macumba, duas velas iam acesas e uma galinha se
encontrava morta jazida em um prato de louça escuro. suas penas eram pretas e
tinham riscos brancos em suas extremidades, seu corpo ia jogado e o pescoço
torcido findava em uma cabeça com olhos revirados, crista murcha e um filete de
sangue e baba saindo do bico amarelado. tinha muito sangue sobre o prato, o que
mostrava que a galinha tinha sofrido uma punhalada bem dada em seu peito,
talvez nem tivesse um coração ali dentro da carcaça. voltei dois dias depois
àquela esquina, as velas não mais haviam, mas o corpo da galinha ali ainda
permanecia. uma enxurrada de moscas cobriam feridas causadas por algum felino
ou cachorro vira-latas, que, com sorte, encontrou alimento naquele não-ser-mais
oferecido. nenhuma mão humana profanou aquele ato. sete dias depois, o
santuário foi lavado e apagado completamente daquela esquina.)
ao passar pelo cemitério que
ladeia uma das ruas que dá de encontro ao meu caminho de volta, reparo que seus
portões laterais estão levemente encostados, mas não trancados, e invadido por
um sentimento de curiosidade me esgueiro pela entrada daquele local, como meu
medo de alma penada é muito menor do que o das sombras que minha mente contém,
caminho entre os túmulos com a única pretensão de não ser percebido pela alma humana
e viva que ali deve ter adentrado. não demoro muito a encontrar aquilo que
procuro, prostrado em um grande mausoléu dos idos do século dezenove está uma
figura esquia trajada com vestes carcomidas segurando uma garrafa em sua mão
esquerda e uma vela vermelha acesa na direita. sua pele é negra e seu rosto
ostenta uma longa barba branca encrespada, não tem cabelos na cabeça, e não
consigo observar com clareza seu rosto devido à iluminação proveniente apenas
da vela em suas mãos e da pouca luz que adentra o cemitério advindas dos postes
elétricos de fora. o silêncio de repouso é cortado pela voz rouca que sai da
garganta da figura, que parece discursar para os mortos, palavras que, por mim,
foram assim entendidas
“a noite toma contornos
fluorescentes
e as almas cantam um lamento
iridescente
hoje você pode ter acordado em um
dia escuro
acreditando na falta de um naco
daquilo que se pensa ser si mesmo
mas te confesso absurdo
animalzinho
que se eu deixar cair esse todo
de vidro que vem em minhas mãos
contra a pedra azul que se chama
terra aqui estendida
ela vai desfazer-se em mil
estrelas
tantas quanto as partes que em ti
e em mim habitam
e se com cada caco incrustássemos
na carne
com o único prazer de nos
fazermos inteiros
somente uma dor quase montanha
contaminaria nosso corpo, espaço
e cerebelo
porque a garrafa de vidro
novamente não formaria
daqueles seres que mais se
fizeram passageiros
e nunca se sentiram ao todo
inteiros
belum selezai talvez seja o
primeiro
já que ele vive forasteiro
nos recantos dos pássaros e de
outros seres pequenos
não é poeta apesar de rimar sons
mas de poesia só entende aquele
que está amando por completo
ou aquele que se tortura
diariamente sem sabê-lo
belum selezai não ama e nem
tortura
belum selezai só anda a catar
pedaços
e se uma nuvem se junta a outra
para fazer chuva
e se uma folha da árvore cai para
outra poder brotar
e se um grão de areia vira ilha
depois de um centilhão de anos
e se duas células que se unem
formam uma criança
para belum selezai as coisas não
se dão assim
a chuva, a árvore, a ilha e a
criança
são todas imagens da cabeça que
se quer inteiramente
a nuvem, a folha, o grão e a
célula
servem então apenas para sua
semelhança infinitesimal
seríamos então partes preenchidas
de todos?
o que completa a vida é tão
somente a morte
o que completa o círculo é o seu
ponto de início
estou vivo e sei disso e ainda
tenho uns outros pontos a cerzir
assim tem dito o profeta, amigo e
espírito
cujo nome é belum selezai e não
outro”
findadas essas palavras, com um
sopro audível, a figura apagou a vela, e depois de alguns segundos ouvi a
garrafa se quebrar a alguns metros de distância. saí de minha tocaia tentando
reconstituir o caminho de volta para a entrada do cemitério por onde tinha passado,
enquanto repetia para mim mesmo alguns dos trechos do que tinha ouvido. belum
selezai… ganhei a rua e continuei meu caminho. já em casa, adentrei. e com uma
exaustão tremenda joguei-me no colchão e adormeci prontamente.
(um sonho. estou em um quarto fantasmagoricamente
iluminado com luz branca, distingo apenas uma diminuta janela, tão pequena que
não seria possível toda essa luz advir apenas dali, vejo móveis que aparentam
ser muito pesados, uma cama, uma poltrona, uma estante horizontal, e objetos espalhados
cujas formas não trazem nenhum tipo de singularidade. no quarto, além de mim,
reconheço um pássaro, um pequeno pardal de penugem preta com uma barriga
branca. muito pequeno e frágil, parece ser ainda um filhote. aproximo-me dele a
fim de espantá-lo para que ganhe a liberdade através da janela. ele não entende
meu ímpeto e começa a voar em círculos, debatendo-se muitas vezes nas paredes e
móveis, esganiçando um lamento triste. fico apavorado em vê-lo nessa contenda e
busco a todo custo distraí-lo para o objetivo que tenho em mente, sua
libertação. um tempo indefinível se dilata nessa dança entre pássaro e homem.
em um momento, cansado, o pequeno pardal pousa ao lado da cama, e o homem, que
sou eu, tenta pegá-lo carinhosamente pelas mãos, fazendo um movimento delicado
com os dedos em busca de entrelaçá-los sob o minúsculo corpo de ave que pulsa
com o furor do cansaço. devido a sua falta de destreza, a ave solta um grito e
volta a voar em círculos pelo quarto, se debatendo novamente hora ou outra nos
objetos que compõem o cenário. mais uma vez o pássaro desiste de suas
investidas e pousa dessa vez no pé da estante. mais uma vez o homem, agora todo
banhado de suor, tenta com maior cuidado capturar o pássaro com as mãos, ele
balbucia palavras de conforto e assovia breves melodias para tentar acalmar o
coração da ave, que quase lhe rompe o peito. mais uma vez uma tentativa
frustrada. nova dança, inquietude alargada. o pássaro, puro a respeito das
coisas do mundo, enfia-se embaixo da poltrona e lá parece parar de se debater.
o homem, atemorizado com a possibilidade de a ave ter encontrado seu fim, grita
e se desespera, tenta empurrar a poltrona ou levantá-la, mas esta é muitíssimo
pesada, e nenhum de seus esforços consegue movê-la ao menos um centímetro. pega
então um objeto qualquer com o qual ultrapassa rente ao chão a poltrona por
baixo a fim de retirar dali o pássaro sem lhe causar nenhuma dor. a ave sai
toda empoeirada e logo que vê novamente a luz, retorna seu giro pelo quarto,
capenga e sem direção, com uma maior braveza que resulta em pancadas mais
fortes nas paredes. o pássaro cai novamente em repouso sobre a cama. o homem
não tem certeza se deve novamente tentar pegá-lo, teme pela vida do animal que
lhe está defronte, tem as roupas, o rosto e os cabelos empapados de suor, o
coração chega a subir-lhe pela garganta e a mente fica exausta. o homem
senta-se ao lado do pássaro que pouco reage, soltando apenas alguns pios de
desabafo pardálico. homem e ave se encontram. abruptamente o pássaro volta a
voar. acordo.)