Rolou
para o lado e saiu do casulo. Seu corpo todo suado e um medo crescente trazido
pela luz do mundo ali fora. Não conseguia distinguir se acordara de um sonho
bom ou se adormecido adentrara em um pesadelo. O corpo estranho pulsava, sentia
medo e não conseguia desgarrar das cobertas. Antes se encontrava em terreno
seguro e confortável, a vida era mansa e os dias transcorriam com leveza, tudo
estava em seu lugar e em ordem. Mas agora, tudo parecia ser tão opaco, quase
que irreal. Apercebeu-se que há muito tempo não se movia e foi esticando os
membros um a um, uma centelha de alívio invadiu sua cabeça como se no meio da
testa, entre seus olhos, como se sentisse seu corpo por inteiro pela primeira
vez. Na medida em que o corpo esticava e as articulações estalavam, uma
crescente tensão irradiou de seu peito agora arfante, uma dor que começou
fraca, se intrometeu na mente e aumentou; câimbra motora avassaladora,
contração e constrição – cólica do eu. Teve medo de morrer enquanto lembrava o
calor afável do enrolar da cama. Era feliz, sabia disso e sentia-se completo.
Agora o mundo todo se fazia de formas diferentes de antes, linhas curvas e
outras tantas retas e tudo colorido. Vozes. Sons mecânicos e aves. Que mundo
era esse onde mal conseguia ouvir sua própria voz? – onde o mundo era só seu.
“EU” (?) E se lágrimas rolassem e pudesse voltar atrás, desfazer o tempo,
desfazer seus movimentos? – Mas lágrimas não lhe saiam mais, na realidade seus
olhos estavam bem abertos e as pupilas dilatavam conforme se acostumava à luz.
Sentia dor, mas seu coração freneticamente batendo parecia jorrar seu sangue
para fora do corpo, estava se arrebentando por dentro mas no fundo sentia um
prazer cômico, como que advindo de um lado de sua personalidade que dizia que a
dor ia parar quando ele se acostumasse; pois a dor era parte de sua vida agora,
e isso não era ruim. Aos poucos, seu corpo se fez leve, e todo o peso que
concentrava em si migrou para um ponto indeterminado das costas, era o seu peso
do mundo, o peso que iria carregar de agora em diante. O peso era o mundo e o
mundo também era ele. Parado, concentrou sua respiração controlando o ar que
entrava e saia do peito, não iria morrer, entendeu isso e descartada essa
possibilidade, tentou organizar as ideias que desvelavam em sua cabeça. Tudo
parecia girar ao encontro daquilo que tinha sido e naquilo que se transformara.
Inexorável. Essa palavra surgiu-lhe na cabeça corrompida de uma sensação de
vazio. Não se muda aquilo que já foi, mas muda-se mesmo assim, e essa ideia da
permanente mutação que parecia ser aquilo que estava vivendo naquele instante
encheu-lhe de alegria, uma alegria levemente adocicada – quanto de espera cabe
na palavra esperança? – notou que não estava pensando coisa com coisa, adiava
assim seu próximo passo, pois ainda suas mãos agarravam fortemente os trapos
que antes o envolvia, quanto tempo ainda permaneceria nessa mesma posição? A
mente parecia toda repleta de coisas novas das quais não compreendia, e o
esforço de tentar entendê-las lhe causava mais confusão, sentiu uma iminência
de choro, e dessa vez chorou por inteiro, o corpo todo se estremeceu e se
entregou sem nenhuma piedade a todas essas coisas que não conseguia organizar
no pensamento. O corpo tomado de lágrimas escorria e pingava, e continuava,
mais e mais, até subitamente parar. Com grande esforço soltou uma das mãos
cerradas na coberta, e alisou seu rosto molhado e salgado. Gostou do conforto
do carinho autoimposto, era como que redescobrir o prazer do toque, o tato. Enrijecia
ao passar a mão liberta pelo pescoço e pelo peito, as dobras dos sovacos
sentindo leves cócegas. Entregou-se a uma risada pura, até que mais uma vez
algumas lágrimas rolaram, só que causadas pelo espanto da gargalhada. Ouviu sua
voz. Voz que achara que perdera, e que louco em seu medo inicial, pensou não
possuir mais. Podia falar, podia então gritar. E como se preencheu de prazer ao
dar seu primeiro grito, como um uivo que traz aos ouvidos algo que se encontra
entre o terror e o desejo. Tomado de uma coragem então descoberta, firmou as
pernas em um enlace dos panos para firmá-las, e entre pequenos gritinhos e
espasmos de humor meio débil – como as risadinhas de bebês quando recebem
cócegas vagarosas na barriga – esticou os dois braços em busca do vazio e
balançou o corpo. Fechou os olhos para apenas sentir o movimento. Mais rápido,
e mais rápido ainda... não tinha mais como se segurar por causa da velocidade
que atingira. Soltou-se, esticou as asas que lhe era o peso do mundo, bateu-as
sem saber como. E antes mesmo de encontrar o solo, voou inteiro.
(Said Leoni - 19-mar-2017)
Nenhum comentário:
Postar um comentário